Um sentimento por vez.

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Olá!
Já faz tempo!
Vamos tirar o pó.

Texto realizado como desafio para o Podcast Gente que Escreve. Os hosts do podcasts dão palavras ou elementos que precisam aparecer no texto. No caso, o texto em questão engloba 3 desafios: 1 - Iniciar o texto com a frase de diálogo: Puta que pariu, Marcelo! 2 - palavras: aquário, bala de prata, saudade. 3 - palavras: cabo USB, post it. Frase "quase três horas". Observação: troquei a palavra "post it" por "paçoca", como liberdade poética de uma piada interna no final do episódio que sugere esse desafio. Vamos lá!

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― Puta que pariu, Marcelo!
Já devia ser a quinta vez que ele enfiava a mão na boca para extrair um sentimento. Era algo normal, mas Carla já estava de saco cheio.
― Eu não sou “Marcelo”, droga! Você sabe disso...  ― ele respondeu ofegante, meio agachado, com uma mão apoiada num joelho e a outra limpando a boca ― E o que foi que eu fiz?
A outra olhou-o de cima. O passado querendo aflorar. Não era fácil para nenhum deles, claro. Talvez fosse pior para ele. Ninguém mais ali precisava vomitar um emaranhado de sensações, afinal. Apenas ele.
― Nada… ― ela preferiu a compreensão à raiva, assim como no passado. Olhou para o resto do grupo ― Vamos.
Voltaram a caminhar. Fazia quase três horas desde a saída do último abrigo. Um galpão. Abandonado, talvez, desde antes do mundo mudar. Vazio. A vegetação ao redor começando a tomar conta das paredes. Pararam e descansaram. Comeram. Conversaram um pouco, o máximo possível sem começar uma discussão. Quando os corpos sentiram-se menos abatidos e desgastados, partiram. Agora não encontravam nada. Nenhuma construção ou ser vivo. Era quase um bom sinal. Mas desolação total normalmente significava algum perigo por perto.
A estrada era corroída e esburacada, difícil de trilhar. Muitas vezes era mais fácil margeá-la pela vegetação, se não houvesse obstáculos demais. A estrada, porém, podia ser vantajosa ao oferecer pilhagem diversa em veículos esquecidos pelo tempo, como a caixa de paçoca encontrada na semana anterior. Mas também escondia emboscadas…
Andando à frente, Aquário ergueu uma mão, sinalizando para o grupo parar.
― O que foi?
Em resposta, ele virou meio corpo para trás pedindo silêncio com um dedo. Era um gesto ancestral e conhecido, mas ver Aquário fazendo aquilo era bem estranho. O dedo esticado em frente ao capacete azul parecia lutar contra o ato.
― Ele ouviu alguma coisa. ― Alguém sussurrou e foi repreendido com um tapa. Bala-de-Prata tinha um olhar severo e imitava o gesto de maneira agressiva.
Aquário levantou um pouco o capacete, apenas o suficiente para expor o que eram suas orelhas, revelando parte de sua nuca e rosto. Os sons do ambiente, invadiram seu cérebro e ele controlou a agonia, tentando filtrar tudo e separar o que desejava. Ouvia passos. Eram abafados e pequenos, caminhando sobre algo muito fino. Ele levou alguns segundos refinando o som e extraindo interferências, até localizar a fonte. Estavam na estrada naquele momento, passando entre dois containers caídos. Logo depois vinha um trecho mais livre, onde a velha rodovia ganhava mais uma faixa de trânsito e não havia veículos juntos, formando algo como uma clareira. Aquário caminhou até lá e o grupo o seguiu devagar. Ele estacou e recolocou o capacete. Precisava enxergar melhor. Levantou  apenas parte da viseira escura e a luz da tarde o incomodou. Permitiu acostumar-se por alguns segundos e então ajoelhou-se em frente à armadilha. Uma linha de pesca bem esticada de um lado a outro da estrada. Ele a enxergava vibrar no ritmo dos passos, agora nítidos e bem definidos em seus ouvidos, mesmo abafados pelo capacete. A vibração vinha de uma das margens da estrada. De onde ele estava, focou a visão apertando os olhos e pôde distinguir uma pequena aranha, caminhando sobre a linha.
Sua boca desenhou um sorriso, mas ninguém veria. Ele esticou um braço logo acima da armadilha para ajudar os outros a ter uma ideia da altura.
― Vocês vão passar por cima do meu braço, um por um. Não vamos ficar aqui pra ver o que essa merda de linha vai ativar. Pode ser só um alarme ou coisa bem pior. De qualquer maneira, não deve ser bom para nós.
Os outros obedeceram; passaram devagar, com cuidado para não fazer besteira. Não era hora de tropeçar ou escorregar.
Durante a tarde, após alguma horas, encontraram um corpo. Amarrado a um poste com metros de fios de rede e cabos USB emendados, fora claramente deixado ali por dois motivos: castigo para quem quer que tenha sido o infeliz amarrado, e aviso para quem quer que passasse por ali. Território perigoso. Saíram daquele caminho.
A noite os brindou com o frio, como sempre fazia. Tinham saído um pouco da estrada e estavam num desvio afastado, numa antiga praça de pedágio. Conseguiram usar blocos ancestrais de concreto dispostos em círculo para formar um tipo de cercado e ter um perímetro definido. Permitiram-se uma fogueira pequena. Era uma denúncia fácil de presença, mas Aquário não ouvia nada ameaçador num raio de alguns quilômetros.
Ao menos teriam comida quente e poderiam economizar as paçocas.
O frio aumentou na madrugada. Os turnos de vigia eram sempre três e deviam estar no segundo quando Carla ouviu o choro abafado. Procurou o som com os olhos, mas sabia que o encontraria em Marcelo. Não era difícil que tivesse pesadelos, ou que acordasse para vomitar alguma amargura.
― Desculpe por aquilo mais cedo. ― ela disse quase num sussurro ― Eu estou sempre meio nervosa com tudo isso e me irritei com você. Foi injusto. Me desculpa?
Não houve uma resposta direta. Ele se mexeu em seu espaço e tentou controlar o choro.
― Você tá legal? ― Nada além de soluços mal escondidos ― Marcelo?
A reação ao nome foi um espasmo contido e uma tentativa de resposta engolida pelo choro. Carla se levantou e andou até ele, preocupada.  Ela via suas costas, mas ele estava bastante encolhido em si mesmo. Contornou-o devagar tentando enxergar seu rosto. Não era tão incomum de acontecer. Marcelo vomitaria e aquilo iria passar. Colocaria para fora algum sentimento e ficaria melhor.
O rosto dele apareceu entre um soluço e outro quando a mulher chegou à sua frente. Ela tapou a boca com as duas mãos para conter o espanto e a surpresa. A pele parecia grudar-se nos ossos, os olhos estavam injetados e lavados de sangue, talvez todas as suas veias saltassem em proeminências esquisitas e seus músculos contraíam-se em dor. Estava banhado em um suor vermelho e sujo. As mãos desesperadas arranhando o peito, como se cavando um buraco onde pudessem entrar e tirar de lá algo que causasse muita dor.
Ela se abaixou para segurar as mãos dele.
― Marcelo! Para!
― Nã-não s-sou Ma-rce-lo! ― a agonia da identidade expressa nas palavras que ele repetia para ela todos os dias.
Carla sentiu os olhos se afogarem em lágrimas. Aquilo era difícil demais. Segurando as mãos dele, sentiu a aliança em seu dedo. Olhou para sua própria. Um passado inteiro resumido a algo que ninguém podia compreender. Uma realidade bruta de mudanças grandes demais. Ela suspirou e o olhou nos olhos.
― Quem é você? ― a resposta veio gaguejada, mas foi uma mera correção. Ele não era mais alguém. Era algo. Ela entendeu e não conseguiu conter o choro. Mas refez a pergunta. ― O quê é você?
― Saudade! ― em um único fôlego sofrido.
Marcelo se tornara os próprios sentimentos. Na maioria das vezes, um de cada vez, sempre com intensidades diferentes. Todos eram passageiros, podendo ir e vir. A diferença, no entanto, residia no fato de Marcelo não apenas sentir mas viver o sentimento. Se tornava a coisa por inteiro.
E, como qualquer sentimento que castiga, é preciso colocar para fora.
― Você precisa vomitar, Marcelo! ― Carla fazia seu melhor para conter a própria agonia de vê-lo daquele jeito.
Aquário apareceu e tomou as mãos do homem que já começava a se debater.
― Você precisa fazer ele vomitar, Carla. ― o capacete inexpressivo era uma grande ajuda.
Ela assentiu e segurou o rosto de seu marido com uma mão, forçando para abrir sua boca e enfiou a outra até sua garganta. Sentiu a primeira contração e alguma coisa lá dentro a tocou e se enrolou. Ela segurou entre os dedos e puxou, sentindo outra contração. Marcelo conseguiu se soltar e apoiar os joelhos e mãos no chão, enquanto todo seu corpo forçava para expulsar a saudade de dentro dele. Devagar e aos espasmos, vomitou filamentos de um líquido azul e brilhante que se uniam e enrolavam como em um novelo embaraçado de lã. Como já era esperado, a esfera flutuou e perdeu intensidade até tornar-se translúcida e desaparecer.
Carla o abraçou e ajudou Marcelo a se deitar. Ele adormeceu, exausto de si.
Os outros já tinham levantado e olhavam, tentando passar algum conforto com olhares expressivos.
― Ele está bem? ― Bala-de-Prata não tinha certeza se estava preocupada de verdade. Mas seus olhos arregalados e o tom da sua voz não mentiam.
― Acho que sim. ― Carla olhou bem para o rosto de Marcelo.
― Será que está sentindo alguma coisa? ― A pergunta não parecia correta ― Quero dizer… Será que ele é alguma coisa agora?
― Acho que sim, Bala-de-Prata. No momento, ele deve ser tudo o que sentimos quando colocamos para fora algo que está tentando nos matar. ― Carla afagava os cabelos suados dele ― Eu espero muito que ele seja alívio...

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Tirada de pó?
Isso precisa de uma faxina geral!
Mas, por enquanto, só o aspirador...

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